Sento-me no sofá e tiro os sapatos pretos. Minha meia branca está manchada, marcada, desenhada por uma figura delineada pelo furo do meu sapato. O papel carbono, nesse caso, tinha sido o jornal. Tiro a meia, meus pés estão sujos, o cimento corroera o jornal, furara a meia e atingira o meu pé, retratando, com perfeição, a falta de sola no meu sapato escolar. Chove. Molhei os sapatos, molhei o tampão feito com jornal, a meia está úmida e meus pés, frios. Amanhã não irei à aula. Gosto de estudar mas não gosto de ir à escola. Adoeço. Reprovei a quinta série. Faltas.
Nova turma, novo prédio. Conheci a Rita, Sônia, Gorete, vizinhas minhas, na mesma classe, da nova escola. Iríamos nos tornar inseparáveis (?). Sônia morava na esquina da minha rua. Gorete, morava na outro quarteirão. Ela passava na minha casa, depois pegávamos a Sônia e por último a Rita. Ríamos na ida e na volta da escola. Adorávamos fazer trabalho juntas, jogar basquete juntas (na quadra da CMTC), falar dos nossos amores, chorar por causa dos meninos e ir a bailinhos juntas (quando nossos pais deixavam, quase nunca). Sônia era a de melhor condição social. Sua família, naquela época, desconhecia a falta de dinheiro. Já a minha...
A minha era pobre, pobre, pobre, de marré marré marré. Ou melhor, nós éramos pobres, meu pai não (mas isso é outra história). Durante os finais de semana, sentava-me na porta de minha casa e via a família de minha amiga saindo para um passeio. Nas férias, eles iam para a praia. Não me sentia bem em sua casa, sempre tive a impressão de não ser bem aceita. Julgava ser pela diferença social.
Muitas das vezes fui em sua casa sem ser bem recebida por sua mãe. Lembro-me bem disso. Lembro-me agora, tinha esquecido. Eu era bastante inibida, mignon e boba. Mudei de escola, de amigas, mas ainda usava sapato furado, com jornal no fundo e morria de vergonha de alguém saber desse meu segredo. Isso só me deixava mais tímida. Percebia que não era bem quista por dona Nenê, mas a vontade de conversar ou brincar com minha amiga era maior, então enfrentava uma situação de desprezo, rejeição. O tempo passou. Crescemos. Sônia optou por outras amizades, já não era da nossa turma. Suas atuais amigas combinavam com sua condição social. Eram sócias do mesmo clube, iam para a mesma domingueira, falavam a mesma língua e paqueravam o mesmo grupo de meninos. Nos afastamos. Na idade de quinze anos mudei de bairro, de casa, de turma e de nova escola, sem esquecer da minha antiga turma do ginásio.
Tempos atrás, em conversa com a terapeuta, sobre onde trabalho:
___ Por que, lá?
___ Sinto-me bem nessa escola. A maioria é migrante nordestino, pobre e de família trabalhadora, como a minha quando criança.
__ Mas lá é tão longe.
__ Eu gosto de lá, sinto-me em casa.
__ Sentimento de pertença*.
__É?
__ É.
Recentemente, minha professora do aprimoramento da pós, disse em classe:
___ Nada é por acaso.
Nesses dias enfrento uma angústia bastante conhecida minha. Tentei descobrir, ontem, a origem disso. Conversei com amigos, à noite. Arrumando minha cama para dormir, lembrei-me de alguns momentos vividos na casa de minha amiga Sônia, lugar onde me sentia excluída, deixada de lado, não percebida, rejeitada. Uma cena veio à mente, enviada pelo inconsciente (?). Vou me curar, pensei.
Depois de um dia de aulas, retornando à casa, recebi de presente as cenas dos furos nos meus sapatos. Minha idade? Onze, doze anos. A marca nas solas de meus pés, o jornal molhado, a meia suja, suja e molhada, imprestável. Eu tinha tanta vergonha por ter que sair com os sapatos furados, tanta... Eu era uma mocinha (pré-adolescente) e tinha já minhas vaidades.
Cinco anos ou mais freqüentei a casa de minha amiga, quase que constantemente. Morávamos na mesma rua. O acolhimento era zero, com tendência ao negativo. Já na casa de Rita e Gorete, era por demais bem recebida. O acolhimento era nota mil.
Por que será que marcamos as experiências negativas com tanta força?
É provável que os sintomas de um mal que sofro tenham suas origens nessa época. De repente, quem sabe, com essas lembranças de minha infância/puberdade, eu consiga liberar meu ser de um sofrimento que me acompanha há anos? Dor causada pela inveja ou pelo sentimento de rejeição? Não sei. No entanto, ontem, iniciei o processo de minha cura. Em breve estarei liberta de mais essa sujeira, realidade ou fantasia, do meu inconsciente.
Serei feliz, certamente.
Salve, salve terapia.
*http://ws3.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20041214154124.pdf
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Formação da competência docente
Há 7 anos
4 comentários:
vc eh uam batalhadora.....e uma vencedora!!!
:)
orgulho enorme de ti
:)
Oi Beth, isso é um teste e logo logo se destruirá automaticamente
Oi, Liz.
São degraus, que você já subiu... olhe agora de cima para baixo.. nesse processo de superar as marcas de uma infância/adolescência dificeis.
Você é, para os que a amamos e conhecemos o ser humano que é..., muito maior que a tristeza que essas lembranças possam causar.
Bjs
Bete:
Essa sua história é de um enredo muito parecido com o da minha vida.
Não posso dizer algo com muito sentido pois também estou nessa cruzada. Não tenho bagagem intelectual para cuidar dessa minha dor e isso dói. Como vc. é uma pessoa diferenciada (só nos dois somos) o que vejo é uma longa estrada (não tão longa assim, pois já estamos com quase meio séculos) e que só nos cabe seguir aprendendo algumas coisas e deixando outras para traz.
Esqueça o pertença e passe a pertencer ao presente que você realmente quer.
Beijo.
Nelson.
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